terça-feira, 27 de julho de 2010

Decepção


"Estou vivo na luz que baixa e me confunde" - Claro Enigma - Carlos D. De Andrade.

-O exame dela deu negativo, tinho.
Eu chorei de emoção e alívio quando o pai de Laurinha,depois de eu ficar ligando a semana inteira e ouvindo as mesmas acusações e recriminações da mãe dela,me deu a notícia.
Ela não estava infectada!Ela não estava infectada!
Eu não conseguia parar de chorar.Enquanto o pai dela ia falando e perguntando como eu estava,dizendo palavras animadoras sobre prosperidade mágicas do AZT em deter o avanço da doença, eu só conseguia chorar.
Um peso enorme,simplesmente insuportável,acabava de ser tirado de meus ombros.Ela escapara do contágio.Viveria.
Pedi para falar com ela.Um demorado silêncio calou o pai dela.
-Lamento,rapaz,mas acho que não seria aconselhável.Você compreende,não?Os últimos dias foram muito desgastante para todos.Laurinha anda traumatizada.A mãe dela...quer dizer,nós achamos que não seria aconselhável que vocês voltassem a se falar ou se encontrar.
-Mas...Mas...
-Eu lamento,Tinho.
Desligou.
Ainda contrangido e assustado,voltei a ligar.Foi inútil.Só dava ocupado.Ocupado.Ocupado.Ocupado.
Com certeza,os pais dela tinham tirado o telefone do gancho.Fiquei um pouco mais só em minha melancolia.
Desisti de ligar para ela.Sempre que eu ligava,era o pai ou a mãe dela que atendiam e os dois não permitiam que eu sequer deixasse recado.Apenas uma vez eu tive a impressão de que a Laurinha atendeu.Eu falei,chamei por ela,disse que a amava que precisava vê-la.Que estava morrendo de saudades.
Desligaram.
Primeira decepção.
Infelizmente,não foi a última.Ocorreram outras.Algumas bem dolorosas.
O medo faz coisas bem estranhas com as pessoas.Elas se tornam impiedosas e mais suscetíves à mesquinhez do primeiro eu.
A minha turma sumiu.Mesmo quando eu ligava para eles,ouvia a mesma desculpa de sempre.
Eles não estavam.
Tinham acabado de sair.
Foram para a escola.
Terminam sempre com um infalível quer deixar recado?
Eu deixava.
Dizia quem era.Pediam que eles ligassem para mim.
Eles jamais ligaram.Sumiram.
Só depois de alguns dias,eu fiquei sabendo que todos da escola já sabiam que eu estava com AIDS.Parei de ligar para quem quer que fosse.
Estava cansado de ouvir desculpas.
O preconceito começou a aparecer de várias maneiras,mas quase sempre cruel e injustificado.Obra da grande ignorância da maioria sobre o assunto.
O pessoal da tinturaria não queriam mais lavar nossas roupas.Como sempre,e como outros tantos haviam deito antes deles,inventaram uma desculpa.Algo como mudança de endereço ou reforma da loja.Tanto faz.Era mentira mesmo.
A maioria dos vizinhos sumiu como que por encanto.Não sentimos tanto.Alguns realmente eram bem desagradáveis.A dona Irene,a fofoqueira numero 1 da rua,foi a primeira a desaparecer.Também era dela a verão mais original sobre a forma como eu contraí a doença.
Ela jurava de mãos e pés juntos que fora o alfinete do brinco que usava na orelha esquerda o causador da minha desgraça.
-Todo mundo sabe que quem vende esses brincos no bairro é o Cecílio,aquela bicha louca do 417.Não doi lá que o pobre do Tinho comprou o brinco,não foi?
Eu bem que podia ter dito que AIDS não é gripe e ninguém contrai a coisa tão facilmente.Você não pega AIDS colocando um brinco.Nem beijando alguém.Muito menos sentando-se num vaso sanitário.Aperto de mão e abraço podem causar ate dor e cansaço,dependendo de quem dá um e outro,mas não transmitem AIDS.Suor e lágrima também não.
Deixei para lá.
Por mais que eu ou qualquer outro falasse,fazer com aquela gente ouvisse e,mais,acreditasse era algo bem diferente e difícil.
Certa vez, a coisa azedou entre eu e dona Irene.Como ela não parasse de falar e fofocar,eu cheguei bem perto dela - vocês precisavam ver o branco do rosto dela : melhor que o do Omo - e afirmei:
-A senhora também está com AIDS, sabia, dona Irene?
A dentadura quase caiu da boca.
-Eu?
-É dona Irene...e do pior tipo,sabia?AIDS mental!Isso mata e começa exatamente quando a língua do doente começa a ficar sapecada e dar sinais que vai cair.
Bom,se ela acreditou ou não,eu não sei,mas o fato é que ela nunca mais apareceu lá em casa e eu posso até estar enganado,mas juro que vi a fofoqueira examinando a língua com muita atenção enquanto saía para salvar a panela que deixara no fogo.
Volte e meia,geralmente o pessoal do colégio,ligando para mim.Queriam saber mais.Claro,eles não diziam isso.Ninguém dizia.
No começo era quase sempre palavras de consolo.Apoio intransigente e indignação contra a onda de preconceitos que cercava a mim e à minha familia. Eu sabia muito bem o que era isso ,pois até Helô,a minha irmã,andava pelos cantos,me evitando ou sempre encontrando uma maneira gentil,mas mesmo assim dolorosa,de fugir de mim.
Em seguida,uns dois ou três minutos depois,começavam as perguntas:
-De grupo você é?
-Acho que do grupo 2 e você?
-Eu?De nenhum,claro!
-Ahn, claro..olha,se você estiver tão interessado,eu posso te apresentar um amigo com infecção aguda pelo HIV;como você sabe este é o grupo 1.Mas também tem outros,3 com linfadenopatia,ou seja,os gâglios deles aumentaram generalizamente.Tem também do grupo 4.Esses realmente estão numa podre.
Qual você quer primeiro,seu curioso?
O curioso acabava desligando,chegando a conclusão que AIDS também enlouquecia as pessoas um pouquinho.
Entre um curioso e outro,sabe que a escola tentara impedir meu pai de fazer minha matrícula?!Claro, desculpas não faltaram.Acontece que meu pai não estava sozinho.Meu avô estava junto e,no que começou o rol das desculpas esfarrapadas por parte do pessoal da secretaria,o velho professor de História Maurício Parma foi ficando vermelho e, no que ficou vermelho, a raiva foi aparecendo em seus olhos brilhantes e,naquele momento,selvagens.
Ninguém mais abriu a boca depois que ele começou a falar.O velho tinha realmente o dom da oratória.
Juntou gente e,depois de muita confusão,ele saiu triunfante da secretaria com a minha matrícula.
Não quis desanimá-lo,mas sinceramente eu não estava nem um pouco interessado em estudar ou em qualquer outra coisa.
Estudar para quê?
Até quando?
Agradeci.
A minha decepção era tão grande que eu não pude ir mais longe.Naquda além de um frio agradecimento.

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