terça-feira, 27 de julho de 2010
Os Meses Selvagens.
"O corpo de um torturado escava através de séculos sua intensidade de morte e dor.Mas Deus,para quem não existe história,como pode suportar o horror de um momento único onde só o que muda é a boca que grita?" - A História - Vera Lucia De Oliveira.
Depois daquele dia,eu corri desesperadamente para dentro de mim mesmo.Escondi-me em meu quarto e raramente eu saía.Eu ainda não acreditava.
Dois dias depois,quando o médico voltou ao meu quarto,lembro-me bem o que disse:
-O senhor deve estar enganado,doutor.Eu não posso estar com AIDS.Isso é doença de bicha e eu não sou bicha nem nunca transei com um.
Foi pior.
O médico falou-me mais sobre a AIDS.Me deu alguns folhetos e explicou que essa história de que AIDS era doença de homossexual não passava de uma das muitas idéias errôneas que cercavam a doença.
Não, AIDS não era doença apenas de homossexual.Era bem verdade que eles faziam parte do chamado grupo de risco,pessoas mais propensas a contrair a doença,mas além dos homossexuais masculinos havia os viciados em drogas injetáveis,crianças nascidas de mães infectadas,heterossexuais que transavam com pessoas infectadas e prostitutas.Também havia aqueles que eram obrigados a receber transfusões de sangue,como os hemofílicos.
Fora o que acontecera comigo.
Enquanto ele falava,eu me lembrei do acidente com a moto nova,dois anos antes,e das transfusões de sangue que eu recebi enquanto estive no hospital.Ele me garantiu que fora daquela maneira que contraíra a doença.
Depois que saí do hospital,passei a ler tudo o que se relacionava com a doença.Queria saber mais e mais,desesperadamente,como que procurando algo-um folheto,um livro,uma matéria numa revista qualquer-que pelo menos acenasse para mim com a possibilidade mesmo que remota,de cura para o meu mal.Eu comemorava até a menor notícia de progressos.
Eram meu pai e meu avô que traziam os livros,revistas e folhetos para mim.Minha mãe não tinha coragem.Sempre que nos encontrávamos,e isso ocorria quase que exclusivamente à mesa de almoço e jantar,ela acabava chorando.
Eu lia tudo e, muitas vezes,chegava a decorar o que lia.
O folheto do Centro de Hematologia de São Paulo foi um dos primeiros que li.No início, eu ainda lia com uma certa descrença,como se,apesar de tudo,fosse difícil para mim acreditar que eu ainda estava com AIDS.Inconformado,cheguei a fazer um novo exame.Acabei ficando ainda mais deprimido quando ele deu positivo.
Resignei-me com o fato de que não havia muita coisa a fazer e entreguei-me à mais profunda melancolia.Desinteressei-me por tudo.Tornei-me revoltado e,certo dia,quebrei tudo em meu quarto,atirando os troféus pela janela,rasgando velhas fotografias de glórias ainda recentes.Glórias inúteis.Pela primeira vez em muitos anos, Mister Aventura chorou amargamente.
Parei de ir à escola.Nada me assustava mais do que a idéia de que cedo ou tarde,alguém viesse a saber que eu tinha AIDS.A vergonha seria grande demais para eu suportar.Eu não aguentaria ser olhado com desconfiança e certamente brigaria se alguém comecasse a pôr na cabeça que eu era gay.
Tranquei-me em meu quarto.Quanto mais eu lia sobre a AIDS,mais eu queria ficar trancado em meu quarto.Não suportava mais as lágrimas angustiadas de minha mãe e a indulgência exagerada de meu pai.Preferia a solidão.
Foram os piores meses de minha vida.Meses verdadeiramente selvagens.Vez por outra,eu me via prisioneiro de pesadelos terríveis.Então me via magro,extremamente magro,o corpo avermelhado e coberto de cânceres como a sarcoma de Kaposi,os olhos fundos nas órbitas e destituídos de qualquer brilho.Noutro,eu me via gânglios enormes e vítimas de uma diarréia interminável.Um verdadeiro inferno.
Num deles, vi Laurinha e eu juntos na mesma cama,magros e inteiramente vitimados pela AIDS.Eu acordei gritando seu nome,suando e gritando.
Laurinha...
Laurinha sumiu misteriosamente depois que eu descobri que estava com AIDS.Não ligava.Não me procurava.Desapareceu.Simplesmente desapareceu.
Depois de mais de uma semana de silêncio,liguei para ela me encontrasse em minha casa no dia seguinte.
Eu não sei examente como foi ou o que foi, mas, assim que ela apareceu na minha frente-abri a porta e vi todo constrangimento do mundo,um grande temor em seus olhos-senti que ela sabia.
Não quis acreditar.
Laurinha sabia?
Se sabia e me amava como dizia, por que fugia?
Será que afinal de contas ela descobriria que não me amava tanto assim?
Dúvidas.Dúvidas demais.
Fiquei meio sem jeito,conversando com ela a distância,com medo de contar,mas,principalmente,de perguntar se ela sabia que eu estava com AIDS.Laurinha acabou facilitando as coisas para nós dois quando eu tentei abraça-la e beija-la e ela recuou,horrorizada,gritando:
-Não!
Ela sabia.
Olhei para ela.Pensei em explicar tudo com muita calma para não assusta-la.Talvez até recitasse muitas das palavras dos vários livros e folhetos que lera nas últimas semanas sobre a AIDS.
Não consegui.
Diante do olhar persistente de Laurinha,do horror que vi neles,eu só consegui dizer:
-Eu tenho o vírus da AIDS,Laurinha...
-Ai meu Deus!-completamente transtornada,Laurinha começou a soluçar e chorar incontrolavelmente,os olhos fitos em mim.
-Laurinha...-tentei me aproximar e abraça-la.
Ela recuou,horrorizada.Foi embora com uma despedida nos olhos marejados de lágrimas.De certo modo já esperava por aquilo,mas,de qualquer forma,doeu e doeu muito.
Abandonado.
Eu me senti completamente abandonado.
Até a pessoa que eu amava,e que se dizia apaixonada por mim,fugia de mim.
A melancolia aumentou.Sentia-me mais frequentemente confuso e assustado diante das minhas dúvidas.
A culpa foi inevitável.
Eu não conseguia dormir.Mal fechava os olhos e via Laurinha extremamente magra,inconfunfuvelmente aidética,acusando me...
A culpa é sua...a culpa é sua...
Eu ligava para ela e nunca encontrava em casa.Queria explicar que não havíamos tido qualquer contato que possibilitasse a infecção.Não que eu não tivesse tentado,admito,mas Laurinha lá com suas idéias sobre sexo e virgindade e se agarrava a elas com unhas e dentes.
Nunca pensei que ainda agradeceria por ela ser daquela maneira.
Certo dia,a mãe dela atendeu e,assim que ouviu minha voz,resmungou:
-O que você quer com ela?Quer passar essa doença para a minha filha?
Uma bofetada não doeria tanto quanto a agressividade que entrevi na voz dela.Sem saber o que dizer,continuei ouvindo,ouvindo,ouvindo até que ela,depois de desabafar e enquanto começava a chorar, desligou.
Refugiei-me mais e mais em meu quarto.Passava dias inteiros lendo os mesmos livros e revistas.
Noutras vezes, eu me revoltava com tudo e com todos.Culpava meio mundo por minha desgraça;
O motorista do fusca que abirra a porta contra a qual eu e minha moto havíamos nos chocado quase dois anos antes.Os médicos que fizeram as transfusões...
Por que eu?
A pergunta não saía da minha cabeça.
Desorientado,vez por outra louco,me sentia antes de tudo envergonhado.Por mais que eu falasse e que a maioria das pessoas que me conheciam soubesse,sempre ficaria ali uma pontinha de dúvida.
Os comentários e boatos se multiplicariam à minha volta quando todos soubessem.Só de pensar em tal possibilidade, eu me apavorava.
E os sintomas?
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