segunda-feira, 26 de julho de 2010

Mister Aventura


"A vida é curta para mais de um sonho." Distraídos Venceremos - Paulo Leminski

-Ei meu!Por que toda essa pressa?Vai salvar o pai da forca?
Eu nem ouvi e,mesmo que tivesse ouvido,nem teria dado importância.Eu gostava do vento batendo com força em meu rosto,o cabelo açoitando-o com violência,entrando em meus olhos.
Sorri,divertido.
Eu estava tão contente que não tinha olhos e muito menos ouvidos para qualquer outra coisa que não fosse a Sahara que rugia e estremecia entre meus joelhos.
A chuva fina e persistente seria apenas para aumentar a emoção que eu sentia com seu friozinho gostoso,aquela água gelada ensopando minha camisa,molhando meu cabelo,cobrindo-o com fina película brilhante.
Acelerei e sorri,divertindo-me com os outros que ficaram para trás,aborrecidos,reclamando.
Mais rápido.Mais rápido!
Quanto mais velozamente ela avançava,com mais força eu me agarrava a ela,como se ainda não acreditasse que era real,que estava em minhas mãos,rugindo promessas de felicidade e,principalmente de velocidade interminável.
Ela ronronava como um gato enfastiado,meu corcel poderoso e brilhante.
Há alguns meses eu andava esperando por aquela moto.Era uma promessa antiga que em várias ocasiões cheguei a imaginar que se perderia entre tantas feitas e,volta e meia,esquecidas.
Durante os últimos meses,cheguei a contar,dia após dia, o tempo que me separava dela.Passava pela loja e,dezoito incompletos,dia me separando da maioridade cobiçada commo um prêmio de valor inestimável,ficava namorando-a metálico.
Cavalo de ferro.
Acelerei com vontade e subi a Luís Góis com os outros bem atrás de mim.Caco aprouximou-se e gritou qualquer coisa que se perdeu no ronronar maravilhoso de Sahara.Alguns metros atrás Paulinho Maluco e Geninho xingavam.
No fundo,no fundo, acho que os tres estavam apenas morrendo de inveja.A minha Sahara era realmente linda.
A minha Sahara...
Naquele momento de recente e deliciosa intimidade,eu acreditava que podia continuar em cima dela pelo resto da vida.O melhor presente do resto da minha vida,pensei várias vezes.
Entrei acelerando na Domingos de Morais,os outros ora se aproximando,ora ficando pra trás.
Gargalhei.
Caco me xingou.
-Eu sou o Mister Aventura! -gritei-O gostosão da vila mariana!
-Você é o babaca que vai acabar quebrando o pescoço se não diminuir a velocidade!-resmungou Caco,muito aborrecido,equilibrando-se com alguma dificuldade na sua Tamaha.
-Você acha benhê?-perguntei, me divertindo com as preocupações dele e dos outros ainda mais.
Afastei-me.
Virando a cabeça e olhando para trás sorri,mas sorri cheio de felicidade.
Eu estava realmente muito alegre.
Dezoito anos,eu queria mais e todas as formas.Mister Aventura foi um apelido que apareceu como brincadeira e pegou mesmo.Todo mundo me conhecia.Aventura.Aventura.Aventura.
Eu tinha meu lugar no time de futebol de salão do colégio.Havia vários troféus dos muitos torneios e campeonatos de skate de que eu participara.Eu sempre fui presa fácil até da mais simples e rápida emoção.Fazia e participava de todas,mas as motos eram a minha grande paixão.
Por isso, imaginem a minha cara quando,completados os dezoito de uma responsabilidade inquestionável,eu recebi a chave da Sahara.
Novinha.
Desejada.
Minha.
Eu nem me preocupei com a chuva que caía e muito menos com a falta de documentação para girigi-la.Saí.Durante mais de uma hora rodei de um lado para o outro,vento frio batendo em meu rosto, a chuva fina molhando-o.
Puxa,como eu tava feliz!Como eu estava feliz!
Todo mundo tinha que saber.Fui de casa em casa.Caco,Paulinho,Geninho.Todo mundo tinha que saber.
Todo mundo viu.
Geninho chegou a ficar de olhos esbugalhados.Paulinho não resistiu e passou a mão várias vezes na Sahara.
-Beleza cara...beleza pura!-dizia de vez em quando,os olhos brilhantes de entusiasmo.
O Caco ficou remoendo uma indisfarçável inveja,de longe.
-Ainda levo mais fé na minha Yamaha - resmungou.
-Acha mesmo,Caco?
-Aposto qualquer coisa na minha menina.
-Que tal uma corridinha para vermos como é que é isso?
-Eu não sei não.Essa chuva...
-Chuvinha,meu,chuvinha...-Geninho adorava por lenha na fogueira.
-Então?Topas?
Ele topou.Relutantemente,mas topou.
Geninho e Paulinho apenas nos acompanhavam.A corrida era entre nós dois.Yamaha na frente,Sahara atrás.Sahara na frente e Yamaha atrás.A gente vinha se revezando na frente desde que saímos da casa dele,na rua Miraflor.Apenas eu ainda ria e me divertia com toda aquela correria.Caco já andava aborrecido e,vez por outra,resmugava qualquer coisa sobre pararmos com aquela loucura.
-Só se você disser que a minha Sahara é melhor que a...
Subtamente,ele me interrompeu,apontando para frente e gritando:
-Olha o carro!Olha o carro!
Quando eu me voltei para olhar,a porta de um dos carros parados num dos lados da rua já estava se abrindo e eu rumava velozmente para ela.O choque foi violento e inevitável.
Lembro-me apenas de que me senti violentamente arrancado de cima da moto e arremessado para o alto.Lembro-me do guinchar insuportavel de ferros retorcidos e da Sahara girando repetidas vezes no vazio,deslizando no asfalto molhado,com a parte da frente estranhamente sobre a porta do fusca no outro lado do vidro molhado do pára-brisa.
Lembro-me de ter visto o asfalto avançando rapidamente em minha direção e depois não me lembro de mais nada.
Mergulhei na mais absoluta escuridão.
Quando abri os olhos novamente,me vi estirado numa maca e atravessando rapidamente o corredor de um hospital, as luzes no teto passando depressa demais,ferindo meus olhos que,depois de algum tempo,apenas conseguiam entrever os rostos dos médicos e enfermeiros que empurravam a maca para frente.
Ele vai precisar de uma transfusão de sangue!
Aquela frase continuou alfinetando a minha conscieência durante algum tempo,antes que eu retornasse mais uma vez à escuridão.
Transfusão de sangue...
Transfusão de sangue...
Transfusão de sangue...

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